sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Globo e cia. na ECA

Presença de empresas de mídia no curso de jornalismo da USP gera reação dos alunos

Henrique Costa, para o Observatório do Direito à Comunicação 29.02.2008
Para alguns, um curso de jornalismo moderno e que contempla a pluralidade. Para outros, um currículo abandonado às necessidades do mercado, sem linha pedagógica e que põe em risco a autonomia da universidade pública. Uma realidade confusa que só corrobora com a visão de que a universidade brasileira vive uma grave crise. Financeira, administrativa e, sobretudo, de identidade.

Esse é o caso do curso de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Há alguns anos, o Departamento de Jornalismo da faculdade promoveu sua primeira parceria com um grande conglomerado de mídia, a Folha de S. Paulo. Desde então, as parcerias se estenderam a outras empresas – Editora Abril e, a partir deste ano, as Organizações Globo – e também à organizações não-governamentais como a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), onde participam de disciplinas chamadas optativas livres, cuja escolha fica a critério do aluno, mas sem a obrigação em cursá-la.

O modelo, apesar de parecer consolidado, ainda gera polêmicas e questionamentos no ambiente universitário. Um sinal de que as disciplinas co-patrocinadas ainda não foram totalmente digeridas na universidade é a iniciativa recente do Centro Acadêmico Lupe Cotrim (Calc), dos alunos da ECA, em promover, por conta própria, um curso “anti-Globo”. Em resposta ao modelo adotado, o Calc pretende traçar um histórico da emissora da família Marinho e, a partir disso, questionar as prioridades da universidade. Incongruentes, a seu ver, com o caráter público e a crítica que devem estar presentes no curso.

“Se os coordenadores do curso avaliam que ele tem deficiências, a opção é pelas parcerias”, afirma Tatiane Klein, do centro acadêmico. “Quando um professor especialista em alguma área deixa a disciplina, não há quem o substitua”, continua. O que levaria a crer que, se não há parceria, não há substituto. Um exemplo é a disciplina “Jornalismo Sindical”, que não existe desde 2003, quando faleceu o professor e jornalista Jair Borin.

Para o professor José Coelho Sobrinho, coordenador do curso de jornalismo da ECA e responsável pela implantação das parcerias, o modelo adotado pelo curso é positivo porque possibilita aos alunos tomar contato com as experiências da grande imprensa. Mas ressalta que ninguém é obrigado a cursá-las. “As parcerias são feitas de acordo com a necessidade de formação do aluno e contemplam a pluralidade que o curso deve ter”, afirma Coelho.

Em formato de “estudos de caso”, a Folha patrocina uma disciplina sobre imprensa diária, enquanto a Abril se dedica a ensinar “edição de texto em revista”. Já a Globo começará, depois de cinco anos de negociação, com um curso sobre “jornalismo em televisão”.

Responsabilidade de quem?

A Rede Globo tem um departamento específico para promover o intercâmbio com as universidades, o “Globo e Universidade”. Andréa Pansani, responsável por acompanhar a parceria com a ECA, conta que, para a Globo, a idéia é promover “uma troca permanente de experiências e idéias com as universidades” e que o projeto “contribui para a geração de conhecimento sobre televisão no país e com a formação de futuros profissionais”.

Para o professor Hamilton Octavio de Souza, chefe do Departamento de Jornalismo da PUC-SP, “A Globo tem procurado estabelecer boas relações com as universidades, cumprindo seu papel de relações públicas. O problema é a instituição aceitar isso, é a desmoralização da universidade. Se ela acha que uma empresa privada pode fazer melhor, então fecha”. De fato, o que se questiona não é o interesse das corporações, mas sim a opção da universidade.

Segundo o professor da PUC paulistana, é importante que os alunos tenham contato tanto com a grande imprensa quanto com veículos independentes, mas rechaça qualquer tipo de parceria como as que são feitas na ECA-USP. “Abrimos espaço para conhecer as empresas, não só as grandes. Mas não abrimos a grade do curso para esse tipo de coisa”.

As disciplinas feitas em parceria têm uma descrição e um programa previamente definidos, acessível a qualquer um, no sistema eletrônico de graduação da USP. Além disso, contam também com um professor responsável, assim como qualquer outra. Mas dentre as várias acusações feitas pelo centro acadêmico está a de que, na prática, quem determina o programa é a empresa e quem conduz o curso são os seus profissionais.

O professor Coelho garante que a universidade, através do seu Departamento de Jornalismo, não abdica de decidir a respeito do curso. “As disciplinas têm professores encarregados, que podem vir a convidar os profissionais das empresas. A universidade não abre mão de definir seu currículo”. Já para a Globo, a disciplina é ministrada por “ambos”. Mas é ao consultar os alunos que cursaram as disciplinas co-patrocinadas que se tem uma visão mais objetiva da questão. E não só isso. É possível também obter um pequeno retrato da universidade hoje.

Estudo de caso

Marjorie Rodrigues, aluna do 3º ano de jornalismo da ECA, revela que pretende trabalhar com jornalismo diário no futuro, desejo mais do que recorrente entre os alunos do curso. Resolveu cursar a disciplina “Estudo de caso – Imprensa diária”, sem saber que ela seria coordenada pela Folha de S. Paulo. Marjorie gostou do curso, mas, com razão, achava que era outra coisa. Afinal, quem organizou o curso foi o próprio programa de treinamento do jornal. “No Júpiter [o sistema de matrículas da USP] pareceu que iríamos analisar vários jornais impressos. Só no primeiro dia eu soube que seria uma série de palestras com editores e repórteres da Folha. Mas, no fim, foi uma disciplina legal, eu gostei de fazê-la”.

A futura jornalista conta com detalhes a respeito da experiência na disciplina da Folha. “No trabalho final, tínhamos de analisar a cobertura que eles fizeram de um determinado evento e ressaltar seus pontos negativos e positivos. Para esse trabalho, era imprescindível que falássemos pessoalmente com pelo menos um dos jornalistas que participaram da cobertura”. O professor “responsável” pela disciplina era justamente José Coelho Sobrinho. “Não sei o quanto ele se envolvia ‘nos bastidores’, mas me parecia que a Ana [Estela de Souza Pinto, coordenadora do trainee da Folha] decidia as coisas no curso”, conta Marjorie.

Assim como no caso da Folha, o programa da disciplina “Edição de texto em revista” coordenada pela Editora Abril, também não seria facilmente identificável antes da primeira aula. É o que conta Rodrigo Barros Martins, aluno do 3º ano. “O programa da disciplina não correspondia ao do sistema Júpiter. Na verdade, o programa era pautado pelos jornalistas ‘responsáveis’ pela aula, já que a disciplina era uma espécie de workshop com um jornalista diferente por semana falando sobre temas genéricos do jornalismo e relacionando-os com sua experiência profissional”. A avaliação era feita por repórteres recém-saídos do Curso Abril de Jornalismo.

Com uma boa dose de naturalidade, Marjorie faz ainda um comentário que revela um sentimento cada vez mais comum dos estudantes em relação a seus cursos. “Acho que, em termos práticos, foi melhor do que algumas disciplinas ‘laboratório’ que a gente teve”. Seria o caso, então, a partir do que defendeu então o chefe de departamento da PUC, de fechar o curso de jornalismo na USP?

Onde mora o problema?

É inegável que as universidades, sobretudo as públicas, não devem misturar seus objetivos aos do mercado. Afinal, se a educação não é uma mercadoria (mesmo que alguns insistam no contrário), ela deve ser crítica, inclusive, do próprio mercado. Exatamente por isso, sem juízo do mérito, o que acontece na USP e em outras universidades brasileiras naturalmente deve ser questionado.

Para o professor Coelho, não há necessariamente incongruência nesta complicada relação entre público e privado. “Crítica não quer dizer condenação. É louvável que eles venham até aqui discutir o seu projeto”, diz, se referindo às empresas e às organizações não-governamentais. Quando perguntado por que outras mídias, alternativas, não têm o mesmo espaço, ele responde: “Só precisa haver oportunidade. O curso é pluralista e está aberto para quem se interessar”, diz Coelho. Já Hamilton, da PUC, acha estranho que uma universidade pública entregue para as empresas a função de ensinar. “As empresas têm sua forma de atuação pelas regras do mercado e a universidade tem que buscar conhecimento independente e crítico, inclusive da grande imprensa”.

Assim pensa também o estudante Rodrigo. Apesar de achar que as parcerias não ferem a autonomia da universidade, ele entende que as empresas não podem ditar as regras. “Acho que a participação das empresas nos cursos pode ser organizada de outra forma. Talvez em palestras, seminários e debates, ou até possuindo uma disciplina que tenha a supervisão rígida do professor responsável. A estrutura da disciplina deve condizer com o perfil do profissional que a universidade quer formar”, conclui.

“Queremos que o departamento diga qual é o critério que mostra a necessidade da parceria. Não somos contra ninguém, mas contra o fato das parcerias servirem para tapar buracos do curso”, afirma Tatiane, do centro acadêmico dos alunos da ECA. O que acontece na USP, entretanto, não é um caso isolado. Mas não se trata apenas de um problema financeiro. Falta também à universidade encontrar seu lugar no mundo contemporâneo e descobrir para quê forma seus estudantes.

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